No ano passado, um caso envolvendo uma famosa atriz brasileira tomou conta das redes sociais, quando ela foi a público contar que havia sido vítima de “fraude patrimonial”, praticada pelo seu ex-marido, que, sem o seu conhecimento, havia registrado o imóvel adquirido conjuntamente pelo então casal no nome do irmão e, consequentemente, não teria efetuado a devida meação no processo de divórcio.
Com esse caso, ficou evidente problemas vivenciados por inúmeras mulheres e surgiram naturais questionamentos acerca da responsabilidade penal daquele também famoso ex-marido: poderia ele vir a responder por algum crime?
A resposta afirmativa a essa pergunta poderia ser natural, porque, como por demais cediço, a “violência patrimonial contra a mulher” está prevista no art. 7º da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), ao lado da violência física, sexual, psicológica e moral, como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher que precisam ser combatidas pelo Estado, sendo assim conceituada:
Art. 7º. [...] IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
A questão é que, apesar de indicar as cinco formas de violência contra a mulher e de criar mecanismos para coibi-las, a Lei Maria da Penha não tem a finalidade de prever crimes (aliás, só estipula o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência do art. 24-A). A Lei Maria da Penha indica apenas uma reação estatal diferenciada para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Para chegar a essa conclusão, basta ler o quanto disposto no seu art. 1º:
Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Por isso, os 05 tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher, insculpidos no art. 7º, NÃO estão previstos na lei em forma de crimes, havendo apenas a referência ao tipo de violência que deverá ser coibida a partir dos tipos penais previstos na legislação ordinária.
É dessa forma, por exemplo, que, no combate à violência física contra a mulher (art. 7º, I), tem-se os crimes de feminicídio e de lesão corporal de violência doméstica (arts. 121-A e 129, §9º, do Código Penal); no combate à violência psicológica (art. 7º, II), tem-se o crime de violência psicológica contra a mulher (art. 147-B do Código Penal); e nos combates aos crimes de violência sexual (art. 7º, III) e moral (art. 7º, V), chama-se à incidência os crimes contra a dignidade sexual (arts. 213 a 230 do Código Penal) e contra a honra (arts. 138 a 141 do Código Penal).
Especificamente no que se refere à violência patrimonial (art. 7º, IV), a remissão aos crimes contra o patrimônio previstos no Código Penal – artigos 155 a 180-A – encontra um obstáculo legal que, diante da interpretação que vem sendo conferida pela jurisprudência, acaba por inviabilizar a responsabilidade penal do agressor em muitos casos de violência patrimonial contra a mulher, a exemplo daquela situação experimentada pela famosa atriz, referenciada no início desse texto.
O aparente obstáculo à responsabilização criminal desses agressores encontra-se insculpido no art. 181 do Código Penal, que assim dispõe:
Art. 181 - É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo:
I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.
No dispositivo acima transcrito, tem-se o que a doutrina denomina de “escusas absolutórias” ou “condições negativas de punibilidade”, imunidade absoluta que, mesmo diante da existência de um crime (fato típico, ilícito e culpável), afasta a possibilidade de aplicação de responsabilidade penal para aqueles autores de crimes contra o patrimônio (excluídos partícipes), salvo se o crime for praticado com emprego de violência ou grave ameaça ou se a vítima for idosa.
A jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, entende que, havendo imunidade absoluta, não tendo sido essa excepcionada pela Lei Maria da Penha e sendo vedada a analogia in malam partem no Direito Penal, não há como afastar a incidência do art. 181 do Código Penal aos casos de violência patrimonial contra a mulher.
Veja-se importante precedente do STJ, reiterado RHC 171802 em 24/10/2022:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE ESTELIONATO (ARTIGO 171, COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). CRIME PRATICADO POR UM DOS CÔNJUGES CONTRA O OUTRO. SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO VÍNCULO MATRIMONIAL. INOCORRÊNCIA. INCIDÊNCIA DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL. IMUNIDADE NÃO REVOGADA PELA LEI MARIA DA PENHA. DERROGAÇÃO QUE IMPLICARIA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. PREVISÃO EXPRESSA DE MEDIDAS CAUTELARES PARA A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INVIABILIDADE DE SE ADOTAR ANALOGIA EM PREJUÍZO DO RÉU. PROVIMENTO DO RECLAMO.
1. O artigo 181, inciso I, do Código Penal estabelece imunidade penal absoluta ao cônjuge que pratica crime patrimonial na constância do casamento.
2. De acordo com o artigo 1.571 do Código Civil, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio, motivo pelo qual a separação de corpos, assim como a separação de fato, que não têm condão de extinguir o vínculo matrimonial, não são capazes de afastar a imunidade prevista no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo.
3. O advento da Lei 11.340/2006 não é capaz de alterar tal entendimento, pois embora tenha previsto a violência patrimonial como uma das que pode ser cometida no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, não revogou quer expressa, quer tacitamente, o artigo 181 do Código Penal.
4. A se admitir que a Lei Maria da Penha derrogou a referida imunidade, se estaria diante de flagrante hipótese de violação ao princípio da isonomia, já que os crimes patrimoniais praticados pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico e familiar poderiam ser processados e julgados, ao passo que a mulher que venha cometer o mesmo tipo de delito contra o marido estaria isenta de pena.
5. Não há falar em ineficácia ou inutilidade da Lei 11.340/2006 ante a persistência da imunidade prevista no artigo 181, inciso I, do Código Penal quando se tratar de violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, uma vez que na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da ofendida.
6. No direito penal não se admite a analogia em prejuízo do réu, razão pela qual a separação de corpos ou mesmo a separação de fato, que não extinguem a sociedade conjugal, não podem ser equiparadas à separação judicial ou o divórcio, que põem fim ao vínculo matrimonial, para fins de afastamento da imunidade disposta no inciso I do artigo 181 do Estatuto Repressivo.
7. Recurso provido para determinar o trancamento da ação penal apenas com relação ao recorrente ( RHC n. 42.918/RS, Relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 5/8/2014, DJe de 14/8/2014).
Pela simples leitura do precedente acima, já é possível responder à pergunta feita no início desse texto: não, na sistemática atual, não poderia aquele ex-marido responder criminalmente. A “fraude patrimonial” praticada durante a sociedade conjugal (art. 1.571 do Código Civil) – ou seja, desvio fraudulento de bens ou valores em detrimento da esposa -, na forma da legislação atual e da intepretação conferida pela jurisprudência, constitui crime (de estelionato ou de apropriação indébita), mas não está sujeito a uma pena.
Hoje, a resposta a essa pergunta, mudaria apenas em três hipóteses: 1) se fosse empregada violência ou grave ameaça em lugar de fraude na violência patrimonial; 2) se a vítima fosse idosa; 3) se a fraude patrimonial tivesse sido praticada após a extinção do vínculo matrimonial (ou da união estável), o que apenas ocorre com a morte de um dos cônjuges, nulidade ou anulação do casamento, separação judicial e divórcio.
Todavia, a resposta a essa pergunta poderá vir a ser outra, a depender do resultado do julgamento da ADPF 1185, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, que se encontra em tramitação no Supremo Tribunal Federal, visando conferir uma intepretação conforme a Constituição ao conflito normativo até então existente e que vem convertendo em inefetiva a pretendida tutela à violência patrimonial contra a mulher.
Como citar esse texto: ALBAN, Rafaela. Fraude Patrimonial contra a mulher e responsabilidade penal. Disponível em: <www.rafaelaalban.adv.br>. Publicado em: 02 maio 2025.
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